sábado, 28 de setembro de 2013

RESENHA: Além da Carne - César Bravo



Sinopse: A coletânea “Além da Carne” é definitivamente dedicada a fãs de suspense e horror, principalmente horror. Originalmente fazia parte do volume “Calafrios da noite”, mas terminou ganhando um título individual pelo seu teor bem mais violento e “gore”. *O primeiro dos contos trata de uma evocação de demônios por um casal cigano. Um dos ciganos, entretanto, resolve trapacear (ou tentar) e enganar o pai da mentira. Um conto clássico inspirado nos piores calabouços do gênero terror. Cheiro de enxofre, vísceras, lágrimas e traições batendo nos porões do inferno. *A segunda história que compreende a maior parte do livro é sobre um técnico de computação que vive uma vida miserável com sua esposa e seu filho Randy; um garoto de dez anos com limitações mentais que o aprisionam em uma mente de bebê. Marcos em um dia ruim demais para ter acordado vê a chance de mudar seu futuro e o de sua família. As coisas realmente podem mudar, mas será mesmo que para melhor? Quanto custaria corromper o próprio destino? *Depois temos Lucrécia; oh, pobre Lucrécia. Uma garçonete sem sorte que presencia em seu emprego noturno a conversa de três homens de terno caro e sorriso fácil. Mas a empresa que representam não vende ou negocia nada que ela já tenha visto. E Lucrécia tem sede de deixar a terra de abusos onde se criou. Deus não a tirou da miséria por mais que implorasse, e se ela ouviu direito, aqueles homens são a própria concorrência do paraíso. *Quarto conto. Serginho e sua Fera. Uma arma carregada, bullying e a certeza que antes do sinal das dez a quadra da escola estará cheia de sangue e justiça — e com algumas lágrimas. *Depois, temos a história de quatro amigos brincando com o acaso. A lenda gira em torno de um quadro que jamais deveria ser visto; um quadro maldito. Mas eles moram em uma cidade pequena e fazer besteiras é a única coisa que resta a cinco garotos adolescentes. São os anos noventa e Axl Rose está quase perdendo a vez para Kurt Cobain como o Atari perdeu para o Super-Ness. Mas os pobres garotos têm bem mais a perder que uma capa da Rolling Stone. Podem perder a própria vida. *O último conto é sobre 153.342. Um demônio que... Droga; eu não devo contar isso... Mas talvez ele te conte... Bem-vindos a mais um massacre da coragem.

Dedico esse livro aos meus pesadelos.

Essa frase é a dedicatória de um livro de contos terror comparável (e não ficaria mal se comparada) aos do mestre da literatura de horror, Stephen King. O livro é iniciado com um aviso que pode ser sintetizado em: o. Se você tem estômago fraco, não leia esse livro. E eu, como leitor e amante de histórias de terror, posso dar a certeza de que é um aviso necessário, atentem à ele. Eu sempre me julguei com estômago forte. Li o livro.

Comecei a leitura como toda vez em que não conheço o autor: sem expectativa nenhuma, porém, sempre lembrando de que ele era um autor novo, brasileira, que ainda pode ser considerando iniciante (apesar de já estar no seu terceiro livro). Quando terminei o primeiro conto, esqueci completamente de quem era, e achei que estava lendo uma das melhores obras de horror que já li.

O primeiro conto do livro é A Cor da Tinta, é o conto mais demoníaco do livro, uma ótima porta de entrada para vermos um pouco do estilo do autor. Muito descritivo, porém, as descrições são feitas aos poucos, de modo que a leitura em nenhum momento torna-se cansativa. O conto é marcado por momentos muito fortes, o leitor chega perto de sentir na pele frações da dor que os personagens sentem. É muito carnal, é muito forte, e o trabalho das palavras e sensações juntas dá calafrios já nas primeiras linhas do conto. O conto trata de um ritual de invocação entre um casal de ciganos de século XIX. Cigano (o cigano macho) tem como objetivo de mais da metade da sua vida um projeto de, a partir de uma máquina que chama de "Fazedor de Milagres", conjurar Lúcifer e dominá-lo junto com todo o inferno. O homem, que sacrifica seus amores, sua família e a própria carne para subjugar o pai da mentira, acaba sendo vítima da própria mentira.

Pagamento Cigano é o maior conto do livro, tomando-o quase por inteiro, e é também meu preferido. Nesse texto, o modo de escrita do autor sofre uma metamorfose impressionante desde "A Cor da Tinta", é muito mais cômico, muito mais atual, linguagem nos aproxima dos personagens de modo que você acha que aquilo pode estar acontecendo com você nesse exato momento, ou estar prestes a acontecer. Trema sempre que seus dias começarem péssimos, caso você seja um técnico em computação. Marcos era, e o conto começa com a descrição do dia que deve ter sido um dos piores de sua vida. Tem um filho mentalmente retardado com uma mulher que não lhe dá mais o mínimo tesão, não se cuida e não cuida dele. Sai para trabalhar, tem caminhos obstruídos que o fazem gastar mais gasolina e dá de cara com seu desejo feminino mais íntimo, que não dá bola pra ele e ainda o chama de "tio". Depois desse cliente, vai para outra, uma velha de uma loja de quinquilharias raras. Depois do conserto da máquina, ela não tem como pagar e o faz passar por um estranho ritual como pagamento. Depois disso, no dia seguinte, sua vida começa a mudar - para melhor, e todos os seus desejos tornam-se realidade. Marcos Prospera! Mas nesse texto cheio de reviravoltas, o problema é o preço de tudo isso, e o desespero quase palpável pelo que Marcos passa, enquanto envolve-se em histórias de passados e assassinatos nos faz ofegar página a página. Ri muito em algumas passagens do texto, principalmente quando é descrito o asco que Marcos tem por sua mulher ninfomaníaca, por exemplo quando compara seu modo de conquista à uma "dança do acasalamento" animalesca. Muito engraçada também é a descrição de um Negão como "afrodescendente de grande porte e musculoso). É um conto brilhante que, para ser sincero, deixa muitos, mas muitos - a maioria, se não todos - dos contos do King no chinelo.

Em O Melhor do Contrato o ritmo alucinante que toma conta da maior parte dos outros contos diminui bastante, porém, a ligação com acontecimentos cotidianos e de conhecimento geral continua trazendo os leitores direto para as cenas. O texto está centrado numa garçonete que escuta as conversas de seus clientes para espantar o tédio das madrugadas. Dois dos seus clientes mais assíduos novamente estão no recinto, tendo conversas sobre negócios. Sem perder tempo, a garçonete se aproxima deles e começa a xeretar, descobrindo mais do que devia. Quando os homens percebem que ela os estava vigiando, seu chefe toma a decisão de elimina-la. Mas aquela mulher não era uma qualquer, ela "não pede arrego pra macho", com tudo o que passou na vida, já não teme a morte, e enfrenta o pai da própria, por fim, aquele que a tentou matar, se encantou de modo que a convidou para sua firma. Aquela simplória garçonete fazia pacto com o diabo. Lucrécia é uma típica trabalhadora - sendo inclusive comparada com Joana D'Arc -, sofrida, fofoqueira, e sempre pondo o nariz onde não é chamada. Passou por mais coisas do que a maioria dos demônios, e no fim das contas, foi recompensada por isso - apesar do texto não deixar claro o futuro da mulher, foi dado um exemplo do que aconteceria com ela se por ventura, ela não fosse mais útil. Além de tudo isso o texto mostra com clareza e citando exemplos males e a futilidade inerente ao ser humano.

O conto A Fera trata de bullying. Na desgraça de uma escola pública brasileira, com diretores e empregados que não estão "nem aí" para os alunos, Serginho passa pelos piores momentos da sua vida nas mãos de Renato, o típico valentão. Quando o último ato de Renato supera todos os limites, Serginho explode e se vinga usando A Fera - um revólver de seu pai. Já repeti isso algumas vezes nessa resenha, mas, mais uma vez a realidade do texto é palpável. Tudo o que acontece com o personagem é passado objetivamente para os leitores, a melancolia de Serginho de espalha pelas páginas e o final surpreendente do texto dá um gancho para uma continuação.

Outro conto longo. A Expressão da Desgraça conta a história de um grupo de cinco amigos típicos entre os anos 80 e 90, que falam palavrões e fazem piadas com as mães uns dos outros que me fez lembrar fãs de blink -182. Aliás, o texto faz muitas relações com algumas bandas, principalmente Guns N' Roses e Black Sabbath - além de uma leve menção ao Nirvana. É um texto coeso, no qual os amigos, para se divertirem num tempo em que não havia quase nada para que se divertissem, davam missões uns aos outros, até que, sem pensar nas consequências já conhecidas por eles, uma dessas missões passa dos limites e o resultado é mostrado ao fim do livro.

Justa Causa é o último e mais curto conto do livro. Percebi uma pequena relação dele com o Melhor do Contrato e A Fera. É o relato de um dos trabalhadores do diabo, o que perverte os outros para o seu caminho. Foi um bom fechamento para o livro, em ritmo mais lento, mas cheio de significados.

Senti falta de uma ou duas vírgulas, e em algumas situações achei que faltou o acento grave. Tive a impressão de, em uma situação, ter percebido a utilização indevida da palavra "onde". Além disso, algumas palavras foram "comidas", não apareceram no texto, talvez com a empolgação da fluência na escrita, o autor tenha deixado esse fato despercebido. Nada que, para o leitor atento, estrague o ritmo de leitura ou deturpe o sentido da frase.

O que mais me impressiona no autor é a completa falta de receio - ou até mesmo de puder - na descrição dos fatos. Mortes e assassinatos são apresentados com uma precisão absurdamente sádica, sem nojinho de personagem desmaiar para que a morte não seja mostrada, tampouco se utiliza de eufemismos para a leitura ficar mais acessível. Como o autor diz no início e eu repito agora, César Bravo não é para quem tem estômago fraco!

César Bravo é um MONSTRO da literatura de terror e um MONSTRO da nova literatura brasileira, e tenho poucas dúvidas de que em pouco tempo ele estará entre os principais escritores nacionais. Competência ele tem, sem dúvida. Posso dizer aqui, com completa honestidade e segurança que Pagamento Cigano é um dos melhores contos que já li na minha vida.

Tenho a honra de ter esse autor como meu parceiro. Sucesso, César. Competência você tem.


Nota: 5,0/5,0

Nenhum comentário:

Postar um comentário